Autores: John Marc DeMatteis (roteiro), Jon J. Muth (pinturas), Kent Williams (pinturas capítulos 6, 10 e 12) e George Pratt (pinturas capítulos 11 e 12).
Data de lançamento: Dezembro de 1990 a Maio de 1991
Sinopse: Sheila Fay Bernbaun, também chamada "Sunflower", é abduzida pelas misteriosas e caprichosas esferas conhecidas como G'L-Doses e aprisionada no seu Zôo espacial.
Lá, após uma improvável união com uma das criaturas onipotentes, Sunflower dá a luz Moonshadow, que um dia partirá numa jornada pelas estrelas com sua mãe e o detestável pai adotivo Ira, em busca de aventuras que o levarão ao seu próprio despertar.
Positivo/Negativo: O mundo é mesmo cheio de injustiças e nada se pode fazer quanto a muitas delas. Mas é possível tentar remediar algumas omissões e resgatar obras cujos méritos merecem uma celebração mais justa, mesmo mais de 20 anos após sua publicação original.
Moonshadow é um caso exemplar. Lançada em 1985 nos Estados Unidos, a série foi uma das mais bem-sucedidas publicações do seloEpic Marvel, célebre empreitada da então "Casa das Idéias" para ampliar seus horizontes com uma série de títulos com temática adulta, cujos direitos autorais pertenciam aos criadores e não à editora. Uma iniciativa que pode ser encarada como precursora da Vertigo, da DC Comics, porém com bem menos brilho.
Isso porque, apesar da proposta, boa parte dos títulos do selo não fugia das convenções do gênero super-heróis, seja na temática, na estética ou mesmo nos objetivos. Ainda que séries como Dreadstar, do divertido Jim Starlin, possam ser consideradas ótimas, em termos gerais faltou à Epic a ousadia que caracterizou, por exemplo, os primeiros anos da Vertigo. Mas houve maravilhosas exceções. Moonshadow é a mais significativa.
A invasão britânica que revolucionou os quadrinhos americanos nos anos 80 ainda ensaiava seus primeiros passos. Alan Moore já estava bem à vontade com o Monstro do Pântano e a saga American Gothic seguia a pleno vapor, apresentando ao mundo tanto John Constantine quanto o jeitinho inglês de virar o universo DC de cabeça pra baixo.
Era um período bastante fértil para novas idéias e riscos, mas as iniciativas ainda eram tímidas. Foi nesse contexto que o selo Epic Marvel anunciou o seu "Conto de Fadas para Adultos".
John Marc DeMatteis na época era mais um dos inúmeros roteiristas de super heróis, tanto da Marvel quanto da DC, até então sem grande destaque. O pintor Jon J. Muth era ainda pouco conhecido do grande público. Juntos, eles criaram uma obra grandiosa, ousada em todos os sentidos: na estética (foi o primeiro quadrinho norte-americano ilustrado inteiramente com pinturas), na temática, na narrativa, mas principalmente no rompimento com as convenções super-heróicas que até mesmo os britânicos na DC só ousaram arriscar aos poucos.
Até Sandman, no início, se passava no velho mundo de super heróis da DC, como fica claro no arco Prelúdios & Noturnos, algo extremamente destoante com a proposta da série, mas bastante típico da "tradição" de universo unificado que tanto caracteriza este gênero nos quadrinhos.
Sabiamente deixando essa "tradição" de lado, DeMatteis deu livre vazão às suas influências literárias e místicas ao compor uma espécie de fábula sobre a jornada da infância à maturidade.
Discípulo do guru indiano Meher Baba, o escritor revelou-se dotado de um lirismo e um senso de ironia deliciosos ao narrar, paralelamente, as histórias tanto de seu protagonista, o jovem Moonshadow, e seu universo místico/espacial repleto de criaturas fantásticas, quanto - emflashbacks - de sua mãe Sunflower em sua viagem de autoconhecimento pelos (des)caminhos da contracultura dos anos 60 e 70. E quem poderia dizer qual mundo seria mais "fantástico" ou mais "real"?
Moonshadow (nunca um nome tão divertidamente hippie soou tão adequado a um personagem) cresceu isolado no Zôo dos todo-poderosos G'L-Doses. Tudo o que sabe sobre o universo aprendeu nos livros, na literatura, na visão dos artistas e sonhadores, como sua mãe. Uma infância que guarda bastante em comum com boa parte do, por assim dizer, público-alvo da série. E esta talvez seja a maior sacada de seus autores.
Pois o gênero fantástico, quando bem utilizado, não é uma fuga da realidade, mas sim um meio eficaz de atingir camadas profundas que o mero realismo talvez tivesse dificuldade em atingir.
E não seria o mundo ao nosso redor tão absurdo, bizarro, maravilhoso e aterrorizante quanto o universo no qual Moonshadow vive suas aventuras? Basta observá-lo com o olhar "inocente" das crianças, dos artistas, dos tolos e daqueles que não tiveram sua sensibilidade soterrada pelas exigências desse mesmo mundo.
A série atinge em cheio o âmago da geração dos anos 80, os desencantados filhos da contracultura, crescendo num mundo que se entrega, com escassa resistência, ao cinismo da filosofia materialista do consumo, onde todos os aspectos da vida tornam-se mensuráveis em valores de mercadoria.
Pelos olhos de Moonshadow, o leitor revive sua própria jornada de descoberta, os primeiros contatos com a realidade, além dos sonhos de infância, em todo o seu mistério e absurdo.
Não por acaso é uma obra polêmica. Nem de longe uma unanimidade. Nos fóruns sobre quadrinhos é comum encontrar parcelas iguais de admiradores e detratores. Enquanto alguns a consideram uma das melhores e mais ousadas HQs dos anos 80, outros a definem como entediante e pretensiosa.
(Vale perguntar se a diferença entre os adjetivos "ousado" e "pretensioso" não seria exclusivamente uma questão de gosto e vivências pessoais de quem lê, afinal como seria possível criar uma trabalho artístico relevante sem uma boa dose de pretensão?).
De qualquer modo, é difícil ficar indiferente. DeMatteis e Muth (com colaborações ocasionais de Kent Williams e George Pratt em alguns capítulos) não desperdiçam uma página sequer das 12 edições, num ritmo contagiante de descobertas e decepções para o jovem Moonshadow: o desesperado apego à duvidosa figura paterna de Ira; o embate e aceitação da inevitabilidade da morte; o confronto com a hipocrisia das máscaras sociais, religiosas e políticas; a mistificação aterrorizada da própria sexualidade; o contato com a guerra, a loucura e a utopia; o desencanto libertador do riso dos trágicos…
Uma gama tão grande de temas intimistas leva o leitor a se identificar mais com algumas edições do que com outras, o que é natural. Há algo de permanentemente misterioso na série, algo que prossegue para além de seu enigmático desfecho.
Nas palavras do velho senhor Moonshadow (narrando a história "não de sua vida, mas de seu despertar"), ecoa um reconhecimento, uma sensação de compreensão plena, que escapa quando se tenta colocá-la em palavras. Mesmo assim, é possível sentir: está lá, nos delirantes sorrisos dos G'L-Doses, fazendo eco com o sorriso que o leitor se surpreende ao ver em seu rosto … Talvez não depois da primeira leitura, mas, afinal, trata-se de uma história que convida a voltar, nos mais díspares momentos da vida.
Moonshadow foi reeditada nos Estados Unidos pelo selo Vertigo, em 1995, com novas capas produzidas por Muth, tornando-se uma das raras séries a serem publicadas pelas duas gigantes do mercado americano.
Sua fama consolidou as carreiras de seus autores. DeMatteis teve oportunidade de levar o velho Homem-Aranha aos seus limites na já clássica A Última Caçada de Kraven (1987). Ao lado de Kent Williams, produziu a desconcertante minissérie Blood - Uma História de Sangue, também pelo selo Epic, outra notável precursora do "estilo Vertigo".
Jon J. Muth continuou assombrando os leitores com suas magníficas aquarelas. Em 1997, reuniu-se com DeMatteis para criar uma espécie de 13º capítulo para sua obra de maior sucesso: Farewell Moonshadow, tão lírica e bela quanto a série original e abertamente dedicada ao guru Meher Baba. E inédita por aqui!
No Brasil, a série chegou em 1990, como parte de um pacote da editoraGlobo que incluía as primeiras publicações de Sandman e V de Vingança, entre outras. Uma época saudosa, quando lançamentos de alta qualidade pipocavam de todos os lados a preços módicos e acessíveis.
No entanto, a série nunca mais foi reeditada por aqui, a ponto de, hoje, ser praticamente desconhecida pela maioria dos jovens leitores brasileiros. Ou pior: lembrada como uma espécie de primo-pobre dos gigantes da década de 1980, como Monstro do Pântano, Sandman, V de Vingança e Hellblazer, o que é terrivelmente injusto.
Já passou da hora de alguma editora trazer Moonshadow de volta, de preferência acompanhada da inédita Farewell Moonshadow, mostrando para uma nova geração de leitores que as "regiões suaves" pelas quais Neil Gaiman tanto conduziu os leitores também já foram exploradas por outros "gigantes", tão excêntricos e caprichosos quanto os G'L-Doses.